Ciência e religião: esta relação é possível?
Historicamente ciência e espiritualidade eram consideradas áreas distintas, porém, a partir da ampliação do conceito de saúde pela Organização Mundial da Saúde (OMS), como sendo “o estado de completo bem-estar físico, mental e social” e não simplesmente a “ausência de doença”, passou-se a considerar o fenômeno da espiritualidade como um influenciador da qualidade de vida das pessoas.
Torna-se necessário — mais que compreender e analisar ideias preconceituosas a favor ou contrárias à espiritualidade e sua influência na saúde das pessoas — aprimorar o conhecimento sobre o ser humano e as abordagens terapêuticas que correlacionam estes dois fatores.
O objetivo é, portanto, contextualizar a doença mental ao longo da história da humanidade e diferenciar o conceito de espiritualidade de religião, focando o fenômeno da espiritualidade e sua relação com a saúde mental, e não o fenômeno da religião enquanto doutrina.
Contextualizando a saúde mental na história da humanidade.
Na antiguidade pré-clássica, a ação sobrenatural era a causa das doenças; a partir de 600 a.c., os filósofos gregos trouxeram a ideia organicista da loucura e até o início da Idade Média o tratamento dispensado era de apoio e conforto aos doentes mentais (Lopes, 2001).
No final da Idade Média até a Idade Moderna, ocorreu uma mudança radical destes conceitos e o paciente psiquiátrico passou a ser considerado como possuído pelo demônio. Nesta época, a loucura era identificada pela influência da ideologia religiosa e pela força dos preconceitos sagrados. O tratamento, antes humanizado, foi substituído por torturas, espancamentos privação de alimentos e aprisionamento.
Foi no século XVII que o conceito de loucura evoluiu do campo mitológico para o campo médico, porém a medicina ainda não tinha elementos para defini-la e os doentes mentais, assim como os portadores de doenças venéreas, leprosos, criminosos, mendigos e demais excluídos socialmente eram internados em instituições que, na verdade, funcionavam como verdadeiros cárceres, onde eram recolhidos e alojados todos os que perturbavam a ordem social.
No século XVIII, surgiu Philippe Pinel, o pai da psiquiatria. Este médico francês teve o mérito de libertar os pacientes psiquiátricos das correntes (Lopes, 2001). Porém, o gesto de liberar os loucos das correntes não foi suficiente para a inclusão destes num espaço de liberdade, mas os classificou e acorrentou como objeto de saberes, discursos e práticas na instituição da doença mental (Milani, 2008).
Os asilos foram substituídos pelos manicômios. O tratamento dos pacientes psiquiátricos tinha como objetivo a reeducação do alienado, implicando respeito às normas e desencorajamento das condutas inconvenientes.
Pinel afirmava que a função disciplinadora dos manicômios e dos médicos deveriam ser exercidas com equilíbrio entre firmeza e gentileza e que o contato demorado do médico com os doentes melhorava o conhecimento sobre os sintomas e sobre a evolução da loucura.
Infelizmente, com o passar do tempo, a ideia original do método de Pinel passou a ser modificada e o paciente psiquiátrico passou a ser submetido a tratamentos corretivos, através da utilização de recursos de imposição de ordem e disciplina institucional.
Assim, no início do século XIX, medidas físicas e higiênicas como duchas, banhos frios, chicotadas, máquinas giratórias e sangrias passaram a fazer parte do tratamento, tanto pelos que defendiam as teorias organicistas da doença mental como pelos adeptos do tratamento moral, todas com explicações e justificativas fisiológicas para sua utilização (Lopes, 2001).
A partir daí até o início do século XX, a ideia de submissão do louco persistia e também as teorias organicistas da doença mental, decorrentes das descobertas da neurofisiologia a da anatomia patológica.
Foi somente depois da Segunda Guerra Mundial que aconteceu a ruptura do paradigma psiquiátrico construído ao longo dos anos. O retorno do crescimento econômico e a reconstrução social alavancaram questionamentos sem precedentes da ordem social contemporânea na busca de criar uma sociedade mais livre, igualitária e solidária.
A descoberta dos psicotrópicos, a adoção da psicanálise e da saúde pública nas instituições de psiquiatria também viabilizaram os movimentos da reforma psiquiátrica.
Freud x Jung: Concepções diferentes em relação ao tema.
Como vimos, a história das religiões e os cuidados às pessoas em sofrimento mental têm muito em comum.
Porém, a concepção de que religião e ciência, especialmente a psiquiátrica, sempre estiveram em conflito é senso comum (Almeida, 2009). Os mais radicais acreditam que a religião pouco ou nada pode contribuir com o conhecimento e desenvolvimento da ciência psiquiátrica.
A partir do século XIX, muitos intelectuais antirreligiosos, como Charcot e Freud, desenvolveram críticas e consideraram patológicas muitas experiências religiosas. Freud, em 1930, na obra “O mal-estar na civilização”, escreveu que a religião resultava em “desvalorização da vida e distorção da visão do mundo real de uma maneira delirante – o que pressupõe uma intimidação da inteligência”.
Embora houvesse psiquiatras com uma visão mais positiva da religiosidade, como Carl Gustav Jung, a postura negativa era predominante.
Jung foi muito mal compreendido em suas obras. Ao se referir à busca de Deus e à necessidade do Sagrado na vida do homem, teve suas palavras deturpadas pelos cientistas da época, alegando que ele era religioso, místico, herético, charlatão, dentre outros muitos adjetivos.
Desde muito cedo Jung interessou-se pelos estudos acerca de Deus e também acerca das mais diversas religiões, a fim de compreender como a imagem que o homem tinha de Deus e a cultivava dentro de si norteava sua vida e seus valores.
Compreendendo melhor a relação espiritualidade /religiosidade e saúde mental.
A fim de compreender mais profundamente esta relação, a diferenciação entre os termos espiritualidade e religião se faz necessária: o conceito de religião está mais calcado no aspecto institucional e doutrinário, ou seja, na fé em uma religião; enquanto que a espiritualidade/religiosidade envolve um conceito mais geral e não tem ligação com nenhuma doutrina.
Atualmente, observa-se um crescente interesse acadêmico por pesquisar o fenômeno espiritualidade e sua relação com a saúde mental, devido a suas implicações para o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas.
Muitas destas pesquisas apontam que a religiosidade pode contribuir com aspectos favoráveis ou não à saúde dos indivíduos. Muitos estudiosos argumentam que a religiosidade gera níveis patológicos de culpa, diminui a autoestima e possui ideologias voltadas para a expressão da raiva e das manifestações sexuais (Medeiros, 2010).
Por outro lado, outros estudiosos defendem que o envolvimento religioso reduz a ansiedade existencial ao oferecer respostas que permitem uma organização de conflitos emocionais, estabelecem um sistema de orientação moral e ética, além de desestimular práticas consideradas destrutivas para a saúde de uma forma geral (Medeiros, 2010).
Estes pesquisadores demonstram que o nível de envolvimento religioso tende a estar inversamente relacionado à depressão, a pensamentos e comportamentos suicidas e ao uso abusivo do álcool e outras drogas. Em contrapartida, quando há ênfase na punição e na culpa, conflitos religiosos, intolerância ou atitudes passivas diante de problemas, observa-se piora nos indicadores de saúde (Stroppa e Moreira-Almeida, 2008).
Panzini e Bandeira (2005) afirmam que vários estudos de saúde pública demonstram que pessoas que apresentam envolvimento religioso têm menor probabilidade de apresentar comportamentos de risco, como violência, delinquência e crime, o uso e abuso de substâncias que criam dependência, como o álcool e a droga.
Além disso, a grande maioria dos usuários de serviços de saúde, avaliados em 350 estudos científicos, quer ser perguntada sobre sua espiritualidade e/ou suas crenças religiosas no contexto do cuidado à saúde (Connelly & Light, 2003).
Portanto, a espiritualidade representa um ponto importante a ser considerado nas questões de saúde coletiva.
Além disso, pesquisas realizadas com pacientes terminais demonstraram que o conforto espiritual não apenas aumenta a esperança de vida dos pacientes como diminui os índices de depressão, de ideias suicidas e de desejo de morte breve.
Koenig (2001) cita estudo realizado com pacientes hospitalizados no qual os indivíduos que afirmavam estar descrentes de sua religiosidade e abandonados por sua comunidade religiosa apresentaram maiores problemas de âmbito psicológico e maiores taxas de mortalidade, nos dois anos seguintes à saída do hospital.
Outro estudo conduzido com pacientes submetidos a cirurgias cardíacas eletivas demonstrou que a ausência de encorajamento e conforto religioso foi relacionada a risco de morte durante um período de seis meses após a intervenção cirúrgica. Atualmente, estão em andamento estudos em maior escala, patrocinados pelo National Institute of Health dos Estados Unidos, para avaliar o impacto da meditação sobre hipertensão arterial sistêmica, doença isquêmica do miocárdio, doença inflamatória intestinal, vírus da imunodeficiência humana e dependência química. (Dal-Farra & Geremia, 2010).
Diante de tais aspectos, torna-se importante refletir também sobre a atuação dos profissionais frente às questões relacionadas à espiritualidade e à saúde mental. Fica evidente a necessidade de preparo do profissional que atua junto à pessoa em sofrimento e a elaboração de novas estratégias de cuidar que exponham de modo claro os diversos meios pelos quais se pode trabalhar a espiritualidade.
Para Alexander Moreira de Almeida, no sítio Vida Mais Saúde e Bem Estar “nos treinamentos médicos, em especial na área da psiquiatria, normalmente a questão da espiritualidade não era abordada ou, quando era, a ênfase se dava basicamente em seus (reais e supostos) efeitos deletérios”.
A neurose, repressão, imaturidade psicológica, intolerância, baixa adesão aos tratamentos médicos e baixo nível intelectual eram habitualmente associados à religiosidade e espiritualidade. Porém, segundo o mesmo autor, nas últimas décadas “pesquisas científicas rigorosas têm sido publicadas nas literaturas médicas e psicológicas e o crescente reconhecimento de que a religiosidade e a espiritualidade são dimensões importantes da vida das pessoas, bem como a constatação de que as práticas e as crenças religiosas dos pacientes influenciam o cuidado e a evolução dos problemas de saúde, têm levado a um esforço internacional de integrar a religiosidade e a espiritualidade na prática médica”.
Assim sendo, é importante que os profissionais de saúde estejam atentos e saibam lidar adequadamente, na prática clínica, com sentimentos espirituais e comportamentos religiosos das pessoas atendidas. Para Moreira-Almeida et al (2006) e Tavares, Beria e Lima (2004) quatro questões sobre o papel da religiosidade na saúde mental do paciente são importantes investigar na prática clínica:
1) O paciente tem alguma forma de espiritualidade/religiosidade?
2) Pertence a uma comunidade religiosa?
3) Tem alguma crença espiritual que possa influenciar nos cuidados médicos? Qual a importância que o paciente atribui a estes aspectos da vida?
4) O paciente usa a religião ou a espiritualidade para ajudá-lo a lidar com sua doença, seu sofrimento, ou essas são fontes de estresse? Caso afirmativo, esta tem sido fonte de apoio ou de conflitos? Apresenta algum conflito ou questão espiritual que o preocupa? Tem alguém com quem conversar sobre estes tópicos? ”
Corroborando com o autor, D’Souza (2007) explicita que reconhecer as necessidades espirituais é uma parte essencial da medicina centrada no paciente.
Conclusão
Há muitas evidências da relevância do fator espiritualidade na saúde psíquica das pessoas. A espiritualidade, quando bem integrada na vida do indivíduo, contribui de forma positiva para a saúde mental.
As pesquisas mais recentes reconhecem e valorizam a correlação entre religiosidade, espiritualidade e qualidade de vida, independente da prática religiosa. Estas pesquisas apontam que a espiritualidade aparece como sendo um fator protetor para o suicídio, uso abusivo de drogas e álcool, depressão, comportamento delinquente e até alguns diagnósticos de psicoses funcionais.
Os aspectos negativos desta correlação são muito pequenos e aparecem nos casos em que os indivíduos buscam melhorias de suas condições, exclusivamente, através da fé, mas se frustram na medida em que elas não acontecem.
A necessidade de preparo do profissional de saúde é muito importante e exige novas estratégias que possibilitem a melhor compreensão dos fatores religiosos que influenciam a saúde dos pacientes. Os profissionais da saúde não devem, portanto, se furtar em acolher e investigar a espiritualidade como objeto de seus estudos.
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